CHINA DESIGUALDADE

Pequim, uma cidade dividida em três

Segundo ativistas, 3 milhões de migrantes foram expulsos de Pequim e de outras grandes cidades nos últimos cinco anos (Foto: Flickr/Natalie Behring)

Em 2016, um pequeno livro de Hao Jingfang, uma jovem escritora chinesa, ganhou o prêmio Hugo, uma distinção internacional conferida a autores que se destacam em obras de ficção científica. Em Folding Beijing, a população de Pequim tinha sido dividida em três grupos que não só viviam em lugares diferentes, como também não tinham os mesmos horários de dormir e acordar. As 5 milhões de pessoas do Primeiro Espaço, os governantes, podiam trabalhar, comer e sair de suas casas entre 6 horas da manhã até às 6 horas do dia seguinte.

Os 25 milhões de ocupantes de classe média do Segundo Espaço acordavam às 6 horas no segundo dia e dormiam às 22 horas do mesmo dia. Os habitantes do Terceiro Espaço ficavam acordados apenas de 22 horas às 6 horas da manhã do terceiro dia, quando o ciclo recomeçava. Todos tomavam remédios para dormir.

Há pouco tempo, Hao soube que seu livro seria adaptado para o cinema. Mas nas últimas duas semanas, a história do livro foi reproduzida de maneira trágica na vida real. Na noite de 18 de novembro, um incêndio em um depósito e em um bloco de apartamentos em uma área pobre de Pequim, onde vivem os migrantes das regiões rurais da China, matou 19 pessoas, entre elas sete crianças.

Assim como em Folding Beijing, o governo de Pequim definiu um limite máximo de 23 milhões de habitantes em 2020, apenas 1 milhão a mais do que em 2016. A fim de cumprir essa meta, as autoridades estão expulsando os migrantes. Seus locais de trabalho estão sendo fechados. As moradias pobres foram interditadas por medida de segurança. Segundo ativistas, 3 milhões de migrantes foram expulsos de Pequim e de outras grandes cidades nos últimos cinco anos.

No dia seguinte ao incêndio, Cai Qi, líder do Partido Comunista em Pequim, anunciou que faria uma inspeção de segurança contra incêndios na cidade. Essa fiscalização transformou-se rapidamente em despejos em massa, sobretudo nas áreas mais pobres. Como uma forma de pressão, o fornecimento de água e eletricidade foi cortado das moradias. A mídia estatal recebeu ordens de divulgar boletins oficiais “sem exceção”, mas que não mencionaram o sofrimento dos que haviam sido expulsos de suas casas. Os voluntários que providenciaram abrigos para acolher as pessoas expostas a temperaturas baixíssimas nas ruas foram impedidos de continuar o trabalho.

Enquanto isso, a população de classe média alta envolveu-se em uma denúncia de abusos em escolas. Em 22 de novembro, oito pais de crianças de um jardim de infância caro em Pequim apresentaram um relatório à polícia local, no qual disseram que haviam encontrado marcas de agulha em seus filhos. Eles alegaram, embora sem confirmação, que as crianças haviam sido obrigadas a engolir comprimidos sem explicação e tinham tirado a roupa para serem examinadas por “vovô médico” e “titio doutor”.

Casos semelhantes de abusos com crianças foram registrados em outras escolas. Em outubro, as câmeras de segurança de uma creche em Xangai fotografaram funcionários dando alimentos temperados com mostarda às crianças. Em maio, na província de Zhejiang, uma professora deu uma injeção com um líquido azul nas nádegas de crianças que não queriam dormir. Como após o incêndio, os censores apressaram-se a proibir a divulgação de notícias sobre o jardim de infância em Pequim. “Não comentem o assunto”, disseram, ao proibir a menção do nome da empresa chinesa RYB Education, proprietária da escola. A Comissão de Educação, por sua vez, comprometeu-se a inspecionar com regularidade os jardins de infância da cidade.

Até então, os problemas da classe média e as dificuldades da classe menos favorecida se desdobravam em universos diferentes, como em Folding Beijing. Porém no livro, o protagonista, inadvertidamente, une os espaços separados quando tenta ganhar dinheiro para enviar sua filha adotiva a uma escola onde pudesse aprender a dançar. Da mesma forma, uma reação nas redes sociais eliminou essa divisão de classes.

Apesar da censura, os comentários online não pouparam críticas. No WeChat, os advogados duvidaram da legalidade dos despejos de migrantes. “Quando você precisa de operários da construção civil”, escreveu um usuário do site Weibo, “você os chama de colegas de trabalho. Quando as oportunidades de trabalho diminuem, eles passam a ser migrantes. Por fim, em situações difíceis são marginalizados ou excluídos da sociedade”.

Mais de 100 pessoas assinaram uma petição dizendo que os despejos eram ilegais, uma violação dos direitos humanos e uma clara responsabilidade de um governo arbitrário. Com uma ironia incisiva, um usuário online escreveu que um mês depois do congresso do Partido Comunista em Pequim, a promessa do “futuro esplêndido” apregoada durante o encontro, traduzira-se em uma dura realidade.

No congresso, o presidente Xi Jinping disse que a desigualdade social entre ricos e pobres era um dos maiores problemas da China. Os membros do partido temem que os migrantes mais jovens, nascidos nas cidades de pais que emigraram na década de 1980, sejam uma ameaça à estabilidade social, porque têm pouca ou nenhuma instrução, perderam os vínculos com o campo e, em razão da desproporção entre o número de homens e mulheres, terão dificuldade em se casarem.

Essas são as pessoas mais vulneráveis da sociedade que estão sendo despejadas de suas casas e privadas de trabalho em Pequim. Se a reação do governo aos seus problemas é a repressão, nada mais apropriado do que repetir a frase de um dos personagens de Folding Beijing: “O atual governo é muito ineficiente e inflexível. Não vejo perspectiva de reforma social e política”.The Economist

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